O Mestre Mário Emídio Oliveira, por ocasião do Open Nacional de Judo Adaptado para a Deficiência Intelectual Masculino e Feminino – Divisão I – Absolutos que se realiza a 23 de fevereiro, recebeu o Fórum no Dojo do Judo Vitória, no Estádio D. Afonso Henriques em Guimarães para falar sobre a modalidade que tanto tem contribuído para demonstrar que o desporto é para TODOS.
“Embora o judo seja uma arte marcial, a sua prática e métodos baseiam-se em torno da suavidade. Dando forma à força do oponente, adaptando-a e usando-a para seu proveito, a fim de alcançar a vitória sobre o adversário”. Comité Olímpico de Portugal
Fórum – Quem é o Mestre Mário Emídio Oliveira?
Mário Emídio Oliveira (MEO) – Eu vim para o Vitória treinar judo quando acabei o serviço militar aos 23 anos. Até nem sabia o que era judo. Na tropa tive que ter aulas de judo e depois na vida civil continuei aqui com o Mestre Carlos do Vitória. E agora já tenho 51 anos e nestes anos todos coincidiu assumir a direção técnica e a direção administrativa e financeira do judo do Vitória.
Fórum – A sua dedicação ao judo é feita de uma forma não profissional?
MEO – Sim, eu trabalho no Centro de Saúde, sou administrativo. E depois do meu trabalho venho-me dedicar a uma causa, e a minha causa é o judo. Deus deu-me uma ferramenta e eu estou a ajudar os outros através do judo, mais nada do que isso.
Fórum – Como tem sido o percurso do judo como modalidade?
MEO – Todos nós que praticámos judo temos a necessidade de distinguir o judo como modalidade olímpica de uma arte marcial. O judo, embora seja uma modalidade de luta, é um desporto olímpico. Quer dizer que a integridade e a ética do praticante estão acima de tudo. Isto quer dizer que o judo é um desporto com um espírito de luta mas de não-violência. Na sua essência o judo não procura aniquilar, nem magoar o parceiro, procura sim vencer o parceiro. E o parceiro que foi vencido também é um vencedor porque consegue perceber que naquele momento alguém foi superior a ele porque foi mais rápido, mais concentrado, mais atento. E esse reconhecimento de que alguém fez uma coisa com mais eficácia do que eu, isso é uma evolução mental muito grande. E também de certa maneira também é uma evolução moral porque nos obriga a estarmos atentos aos outros e a darmo-nos aos outros. E este espírito de judo é um espírito único ao nível das práticas desportivas e muito mais das modalidades de luta. É o saber ganhar e o saber perder e ao mesmo tempo de chegar ao fim, não ganhar e sentirmo-nos um vencedor. E é preciso ter muita honra e muita coragem para assumir essa atitude. E isso é um crescimento humano.
Fórum – Para quem não percebe nada de judo, qual é o objetivo?
MEO – Fácil. São duas pessoas que se agarram e entre elas vão ver quem é que consegue deitar ao tapete, numa área que está perfeitamente delimitada. Quem deitar ao tapete ganha um ponto e quem tiver mais pontos ganha.
Fórum – E diz que isso acontece sem magoar o adversário?
MEO – Ninguém se magoa porque o Mestre quando ensina o judo…ele tem várias divisões técnicas e começamos pelo ukemiwaza, a arte de cair. A pessoa aprende a cair ao tapete. Aprende-se a cair, a enrolar, a adaptar o corpo à situação da queda e a não se magoar.
Fórum – E há uma lógica nas cores dos cintos, quantos são?
MEO – Os cintos são: o branco, o amarelo, o laranja, o verde, o azul, o castanho e depois começa o preto. Dentro dos pretos há cinco pretos. Depois começa com os vermelhos raiados que são dois e mais três com vermelho, o 11.º Dan continua vermelho e o 12.º é duplamente branco. Isso é o limite do judo. Eu tenho o terceiro grau preto, tenho um longo caminho para percorrer.
Fórum – Então o judo sai das fronteiras deste tapete e deste pavilhão?
MEO – Para mim, que sou mestre, o judo é a vitória da paz sobre a guerra. O espírito não é vencermos para magoarmos, é um espírito de honra. Independentemente de com quem lutámos, não magoámos a pessoa e chegamos ao fim os dois vencedores. Porque no fundo estamos a ajudarmo-nos a construir seres humanos melhores.
Fórum – Então qualquer pessoa que venha praticar judo não vem só praticar desporto?
MEO – Não. O judo tem um código de honra, tem um código moral, tem uma ética, uma filosofia e eu como Mestre tenho que dominar perfeitamente essa essência e passar isso aos meus alunos, aos meus atletas. Quem vem para o judo, primeiro cresce como mulher e como homem e depois é que consegue crescer como atleta e como judoca.
Fórum – E aqui no Vitória?
MEO – Nós no judo somos uma família. Temos praticantes desde os quatro aos 65 anos e cada um faz o judo à sua maneira. O judo adapta-se à pessoa e a pessoa adapta-se ao judo. E o crescimento de cada um é diferente.
O Open Nacional de Judo Adaptado para a Deficiência Intelectual Masculino e Feminino – Divisão I – Absolutos realiza-se a 23 de fevereiro no Dojo do Judo Vitória, no Estádio D. Afonso Henriques em Guimarães.
Fórum – Passa-se o mesmo no projeto de Judo para TODOS?
MEO – Em todos os meus projetos de judo – no meu voluntariado dou-me a quem precisa que eu me dê – o objetivo é sempre educar, formar e dar a oportunidade de competir. Todas as pessoas que praticam comigo fazem-no de igual forma como se fossem atletas que estejam a trabalhar para o alto rendimento. Para mim o projeto é sempre Judo para Todos, todos têm as mesmas oportunidades e cada um vai crescer no judo à sua maneira.
Fórum – É uma modalidade inclusiva então?
MEO – Nós conseguimos fazer com que o judo se encaixasse na perfeição naquilo que é o desporto adaptado. Aqueles que querem competir podem competir, com o judo adaptado, o judo de seniores, cadetes, todos. As crianças não competem, até aos 12 anos não há competição formal, mas fazem uns torneios de manifestação de competências.
Fórum – Deste percurso que o judo fez enquanto modalidade no Vitória, quando é que começou a aposta no judo adaptado?
MEO – No judo é tudo muito estruturado, os técnicos têm que ser licenciados, as pessoas graduadas têm que ser rigorosamente aferidas. Não pode chegar aqui e dizer que tem um cinto preto ou um castanho porque comprou um na loja. O Mestre foi-me passando as coisas e eu fui fazendo o meu caminho. Licenciei-me, neste aspeto do ensino do judo, tenho o grau dois e depois o meu Mestre começou a dar umas aulas a alguns miúdos da Cercigui com deficiência intelectual. E eu percebi que eles tinham um potencial enorme e pensei porque é que eles não tinham oportunidade de fazer competição, de fazer um jogo como quem joga futebol? Então começamos a desenvolver um sistema e a motivar também os outros grupos a trabalharem. A limitação está dentro do olhar de cada um de nós quando olhámos para eles. Um olhar paternalista. Fui assim, agora já não sou, mas tenho que me lembrar sempre que já fui assim. Eu exijo o máximo como exijo aos outros, sem paternalismos.
Fórum – Quais são os maiores desafios?
MEO – A minha grande luta não é ensiná-los a eles. Porque eu ensino crianças com quatro anos, ensino adolescentes e cada um tem os seus desafios. Quem é professor sabe que é assim. Todas as idades têm os seus desafios e temos que arranjar estratégias e pedagogias para que eles possam aprender. E eu não nasci ensinado, estudo muito. Estou sempre atento, sempre a ver as experiências dos outros para conseguir tirar o melhor delas para conseguir chegar ao resultado que eu quero: tornar estes jovens adultos e pessoas úteis à sociedade e que o judo seja um caminho para eles descobrirem o desporto. E ao descobrirem o desporto vão ter saúde física, mental, equilíbrio e serem pessoas estruturadas, organizadas e equilibradas perante a família, perante os amigos e perante a sociedade. E se nós conseguirmos isto o mundo é perfeito.
“Como é que eu vou tornar aquela pessoa melhor. Olhar para ela é como olhar para uma pedra e esculpi-la. E depois tenho que torná-la bonita, útil e funcional. E depois tem que ser feliz no meio disto tudo”. Mestre Mário Emídio Oliveira
Fórum – Mas afinal qual é o maior desafio, a sua “luta”?
MEO – É mudar os pais dessa pessoa, as pessoas que giram à volta desse atleta e depois dizer assim: “Tirem os vossos filhos de casa, levem-nos para o judo, levem-nos para o atletismo, levem-nos para o teatro, mas tirem-nos de casa. Deem-lhes oportunidade de conviver, evoluir e partilhar, porque isso é uma aprendizagem comum, quer para a pessoa que tem limitações, quer para a que não tem”. E isso é a grande conquista. A conquista que nós temos no futuro não é eles serem atletas e praticarem desporto e representarem o Vitória ou representarem Portugal. A conquista é eles estarem integrados na sociedade, fazerem desporto em igualdade de oportunidade com os outros e serem respeitados. Não olharem para eles com pena, nem paternalismo.
Fórum – E no judo vai-se conseguindo isso?
MEO – Aqui vamos conseguindo isso. E também damos oportunidade aos educadores, aos professores e aos pais de virem ver isso. Agora o grupo de pais da Cercigui quando fazemos os torneios temos uma claque enorme. Vão todos ver. Isso para mim é uma grande vitória. Ver os nossos atletas em competição saudável em escalão e terem os seus familiares a apoiarem. Eu não gosto de focar os aspetos do trabalho que desenvolvemos só no judo. A luta continua.
Fórum – Chama-se judo adaptado porquê?
MEO – Não podem fazer estrangulamentos nem chaves porque podem não ter controlo e podem magoar um parceiro. As adaptações que existem são só questões relacionadas com a segurança. De resto é tudo igual. No judo há as idades e os escalões e dentro dos escalões há os pesos. Fazem judo dentro das mesmas condições, um atleta com síndrome de down vai competir com alguém com síndrome de down dentro do mesmo peso. O desporto é para todos e nós temos que criar estratégias de maneira a que eles façam a sua competição em igualdade de circunstância com outros atletas da mesma condição. Isso é justiça. Na prática, no treino treinam todos juntos. Nós temos que pegar nos jovens e desde cedo realizar-lhes este espírito, que vão praticar desporto para toda a vida e que o desporto deles é igual ao dos outros porque vão competir em igualdade de circunstância com atletas da mesma condição. As instituições e os clubes têm que estar abertos a integrar estas pessoas nos seus treinos normais sem medo de prejudicar o treino e o atleta A ou B. Quando vão para a competição é que vão fazer a competição adaptada por causa de uma questão de justiça.
Fórum – Isto vai ao encontro dos valores que o judo defende…
MEO – Isto são os valores de uma sociedade justa.
O judo é a modalidade amadora mais antiga praticada no Vitória. A secção de judo foi fundada em 1986 pelo mestre Carlos Fontes, mas atualmente é gerida pelo mestre Mário Emídio Oliveira. Ao longo destes 27 anos, o judo vitoriano tem sido uma escola de formação de campeões para o desporto e, sobretudo, para a vida, incluindo, os que são treinados no âmbito do projeto Judo para Todos. A inclusão pelo desporto de atletas na área da deficiência foi uma iniciativa pioneira e tem sido marcada pelo sucesso, quer em termos de títulos desportivos, quer pelo impacto social que tem protagonizado na vida destes atletas.
Fórum – Tendencialmente, no que diz respeito ao Vitória, o futebol abafa as outras modalidades. Não deve ser do conhecimento geral que o judo seja uma aposta com tantos anos…
MEO – O Vitória já tem judo há quase 40 anos, salvo erro o meu Mestre veio para o Vitória em 1982. Eu fiz-lhe uma sucessão natural.
Fórum – O judo adaptado em Guimarães tem quantos anos em termos de aposta?
MEO – 10 anos.
Fórum – Associa-se muito a modalidade à Cercigui.
MEO – O meu Mestre é do Vitória e começou a dar umas aulas na Cercigui a seis miúdos, depois comecei eu a ir à Cercigui com o espírito de convencer os pais a trazerem os filhos aqui ao Vitória porque é aqui que eu dou judo e para eles treinarem com os outros.
Fórum – Têm conseguido?
MEO – Nós já temos cinco atletas cá e eu tenho cerca de 18 no Cercigui/Vitória porque estamos nas duas instituições.
Fórum – E que caminho tem sido percorrido ao longo destes 10 anos?
MEO – Agora já existe por todo o país, há muitos clubes que têm judo adaptado. O Sporting e o Benfica têm judo adaptado e agora já conseguimos reunir um conjunto de equipas. Mas fomos pioneiros, seguramente. A Cercigui faz parte da ANDDI [Associação Nacional de Desporto para a Deficiência Intelectual], que por sua vez faz parte da Federação Portuguesa de Desporto para Pessoas com Deficiência. E eu sou o responsável de judo da ANDDI e desenvolvi um projeto de judo em termos de competição para estes atletas, mas também sou o responsável mundial de judo para síndrome de down e procurámos agregar todas as pessoas que praticam judo com síndrome de down para darmos força a este movimento de Judo para Todos, Desporto para Todos. E aqui no Vitória somos federados pela Federação Portuguesa de Judo que agora também tem o judo adaptado. Na Federação representam o Vitória, na ANDDI representam a Cercigui, mas são questões burocráticas.
Fórum – E têm conseguido arrecadar muitas medalhas…
MEO – Sim. A nível de campeonatos nacionais todos os anos temos sempre quatro ou cinco títulos. Vencedores de taças de Portugal equipas e vencedores de campeonatos nacionais de equipas, nos últimos anos ganhamos sempre. Este ano foi o primeiro em que a Federação fez um campeonato para síndrome de down e nós conquistamos oito medalhas a nível nacional. Temos tido desempenhos muito bons.
Fórum – Quais são as conquistas que mais gozo lhe deram?
MEO – Mais do que os desempenhos é aquilo que nós fizemos nestes últimos 10 anos. É dizer à sociedade e à comunidade e se calhar até um pouco ao país que não há razão nenhuma para que estas pessoas não pratiquem desporto.
Fórum – E os paralímpicos?
MEO – Na vertente do judo só está limitado aos cegos. A população com deficiência intelectual e síndrome de down a nível mundial é muito superior à de cegos. E estamos a sonhar que os que têm síndrome de down – que têm o cariótipo a comprovar e depois a avaliação psicológica que comprove que tem deficiência intelectual – podem um dia entrar no programa paralímpico. O meu sonho é que fosse para breve.
Fórum – E faz parte dessa luta?
MEO – Faço parte dessa luta. Temos que dizer a nível intercontinental quantos atletas com síndrome de down existem para justificar a inclusão no projeto paralímpico.
Fórum – Já sabemos que o Vitória/Cercigui dá cartaz a nível nacional. E Portugal como é que se posiciona a nível internacional?
MEO – Em termos de judo adaptado nós estamos no topo.
Fórum – E como é que os atletas reagem às medalhas?
MEO – É uma euforia. É muito orgulho. Eles ficam todos muito contentes e satisfeitos por receberem as suas medalhas. E o Mestre fica todo contente e no treino a seguir diz assim: “Esqueçam as medalhas, vamos trabalhar para receber as próximas”.
Fórum – E o que dá mais alegria ao Mestre Mário Emídio?
MEO – O que me dá alegria é sempre que os atletas ganham, mas dá-me alegria quando ganham todos. Fico com a alma cheia. Já ganhei muitas medalhas importantes. Ainda agora estivemos em Itália há dois anos e ganhamos duas medalhas de ouro. Para mim isso é importante, mas mais importante é o grupo todo. Ainda no sábado tivemos aqui um torneio para crianças e o Nelson e o Diogo é que me estavam a ajudar a entregar as medalhas. Se eles não estivessem integrados no judo estavam em casa a ver televisão.
Fórum – E que antevisão faz do Open marcado para o dia 23 de fevereiro?
MEO – Nós contámos aí com uns 50 atletas inscritos.
Fórum – E o resto do calendário de 2019?
MEO – Nós temos um trabalho muito intenso. Em março devemos ir para o Fundão, em abril para Aveiro. Em maio temos o campeonato nacional em Viseu. Estamos a ver se o campeonato da Europa vai ser e junho ou em novembro e a ANDDI está-nos a pedir que se faça cá em Guimarães – vou reunir com a Câmara para isso. Depois em julho e agosto paramos. Em setembro temos que ir para Águeda, em outubro devemos ir para Castelo Branco e todos os meses estamos, no mínimo, com um torneio. Fora os treinos e treinos de competição e outras coisas que vamos fazendo. À segunda-feira vou à Cercigui e aqueles que podem vêm cá treinar à terça e quinta. E às vezes fazemos treinos-extra ao sábado. Eles são, verdadeiramente, atletas.
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