A vida independente já “mora” em Guimarães

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A vida independente já “mora” em Guimarães

O alargamento do financiamento dos projetos piloto do Modelo de Apoio à Vida Independente (MAVI) confirma a importância deste serviço de assistência pessoal para a autonomia das pessoas com deficiência. Tanto Ângela Silva que deixou de frequentar o centro de dia da Casa do Povo de Creixomil e, desde o verão, beneficia deste serviço como a mãe Maria do Céu Silva se manifestam satisfeitas com esta alternativa encontrada.

Ângela Silva teve um acidente de viação aos 18 anos que lhe causou um traumatismo crânio-encefálico. Às sequelas causadas por esta lesão cerebral soma as provocadas pela demora do socorro – como foi projetada, não foi logo procurada enquanto ocupante do carro e vítima do sinistro.

“O carro despistou-se e caiu por uma ribanceira abaixo e andaram aos rebolões e ela foi cuspida e bateu com a cabeça. Eles tentaram procura-la mas era escuro e vieram para a estrada pedir socorro, na altura não havia telemóveis”, conta a mãe Maria do Céu Silva. “Já no hospital os amigos voltaram a insistir que faltava uma pessoa e os bombeiros foram procurar a Ângela e ela estava já em coma”, completa.

Mesmo depois de um demorado processo de reabilitação – sessões que mesmo passados 22 anos do acidente mantém também para aliviar os problemas relacionados com a artrite reumatoide, doença autoimune que tem desde a infância – manifesta problemas de expressão verbal e dificuldades na locomoção e desequilíbrios provocados pela espasticidade que tem num dos braços.

Quando, em março, a pandemia obrigou ao fecho de algumas valências das instituições de apoio social, Ângela Silva frequentava o centro de dia da Casa do Povo de Creixomil, em Guimarães.

Maria do Céu Silva foi adiando o regresso da filha à instituição e entretanto tomou conhecimento da existência dos projetos piloto do Modelo de Apoio à Vida Independente (MAVI) que são viabilizados por vários centros espalhados pelo país que ficaram responsáveis pela gestão deste serviço que assenta na atribuição de assistência pessoal às pessoas com deficiência, promovendo a respetiva autonomia e autodeterminação.

“Eu disse que era um desafio para mim, julgava que a ideia era levar a Ângela para o CAVI [Centro de Apoio à Vida Independente] e darem-lhe assistência lá e não em casa, mas começaram em julho e anulei a inscrição da Ângela no centro de dia”, conta Maria do Céu Silva.

Ângela Silva tem um assistente pessoal responsável por a acompanhar às quartas, quintas e sextas das 14h às 18h, um apoio semanal que totaliza 12 horas de assistência pessoal e que também tem o objetivo de aliviar a carga física e emocional da mãe enquanto cuidadora principal. “E assim já vou a reuniões em grupo com os cuidadores, aproveito para fazer uma visita à minha mãe, fazer umas compras. Agora que está mais frio ficam em casa porque a Ângela gosta de ficar em casa, mas quando era mais quente iam até ao café, na Oliveira”, conta. “Ele é que a leva à casa de banho, é que lhe dá o lanche, a tira do carro e a acompanha à fisioterapia”, descreve ainda Maria do Céu Silva.

“Ela ia para o centro de dia contra a vontade dela. Muitas das vezes eu deixava-a lá e vinha a chorar porque sabia que não gostava de lá estar e também não era o sítio indicado porque tinha pessoas mais idosas. Assim está em casa dela, mais confortável e esta ajuda gratuita ainda é melhor”. Maria do Céu Silva

Foi em conversa com uma familiar, no regresso a Portugal depois de anos emigrado no estrangeiro, que João Miguel Miranda tomou conhecimento da existência da filosofia de vida independente, enquanto alternativa à institucionalização de pessoas com deficiência, e decidiu arriscar enveredar por esta área enquanto assistente pessoal.

Em janeiro deste ano começou a frequentar a formação de 50 horas dirigida aos futuros assistentes pessoais e seria em março que começaria a trabalhar à experiência, não fosse a pandemia responsável por adiar esse momento. “Fiquei a aguardar. Ligaram-me para saber se eu queria fazer uma primeira experiência no mês de agosto para substituir alguns assistentes pessoais que iam de férias. Eu fiquei contente e agarrei a oportunidade e era maneira de ver se tinha aptidão para esse tipo de trabalho”, admite.

“Os assistentes pessoais têm que garantir as condições para a autonomia e autodeterminação dos beneficiários deste serviço e permitir a sua participação e inclusão em todos os contextos de vida. Nunca tinha feito nada semelhante, mas tudo é natural e enche-me o coração fazer este serviço, não estava a contar. E se eu consigo qualquer ser humano consegue”. João Miguel Miranda

O contrato de um mês foi renovado por mais um ano e João Miguel Miranda ficou responsável pela assistência pessoal a cinco beneficiários com diferentes perfis de funcionalidade e tem uma carga horária semanal de 30 horas de trabalho. “As pessoas pensam que ser assistente pessoal é ser cuidador de pessoas de idade e eu não tenho nenhum cliente com mais de 50 anos. Tenho com 20, outros 40… Mas não tem nada a ver com a idade, tem a ver com o proporcionar independência para a vida da pessoa”, explica o assistente pessoal vimaranense.

Tanto Ângela como a mãe foram construindo com João Miguel Miranda uma relação de confiança em que, segundo o assistente pessoal, a “amizade é inevitável”. A Ângela é uma pessoa inteligente, com vontade própria e ao início também se sentia inibida, mas agora não”, começa por dizer. “E para este trabalho tem que se gostar de pessoas, para construir uma ligação emocional porque se não conseguir não funciona. A mim nunca aconteceu mas com o decorrer do trabalho pode-se descobrir que não há empatia”, acrescenta.

“Cria-se uma relação de amizade porque se entra na casa das pessoas e muitas das vezes quando não estou a trabalhar não quer dizer que me tenha desligado dos clientes. Ainda hoje de manhã fui buscar uma medicação e vou porque somos amigos. Eu podia dizer ‘ai não dá porque não estou no meu horário de trabalho e não sou pago para isso’ mas como as pessoas se tornaram minhas amigas e eu amigo delas e gosto do que estou a fazer tento superar-me”. João Miguel Miranda

O assistente pessoal considera que este serviço lhe abriu uma porta “que não conhecia” e que neste momento tem uma noção mais ampla da realidade enquanto sociedade e mesmo que, no futuro, deixe de trabalhar nesta área, terá outra sensibilidade que anteriormente, admite, que não tinha. “Está a ser super positivo. No meu caso tem corrido lindamente, tem que haver abertura e apesar de não estar à espera de certos obstáculos depois de os contornar achei facílimo, mas ao início é tudo novidade. Eu estou a gostar imenso”, conclui.

A diretora técnica do Centro de Apoio à Vida Independente (CAVI) da Póvoa de Lanhoso, Joana Branco, refere que a equipa desta estrutura também está muito satisfeita com o trabalho de João Miguel Miranda na prestação deste serviço. “Excelente, muito bom como assistente pessoal”, avalia.

O apoio atual dos projetos-piloto de assistência pessoal às pessoas com deficiência é o possível e está longe de ser o ideal, quer ao nível do total de horas, quer em relação ao número de beneficiários abrangidos em todo o país. “Temos um número máximo de utentes que podemos acompanhar que são 50 e temos um número máximo de horas semanais para distribuirmos por estes beneficiários. Ou seja, para darmos uma boa assistência, apesar de termos vagas, nós nunca conseguimos acompanhar essas 50 pessoas porque não temos horas suficientes”, explica a diretora técnica do CAVI da Póvoa de Lanhoso.

Neste momento o projeto piloto que este CAVI está responsável por gerir conta com 44 beneficiários e cerca de 15 assistentes pessoais para conjugar horários consoante as necessidades das pessoas beneficiárias. “Estamos sempre a aceitar candidaturas e ficam em lista de espera porque podem surgir vagas e havendo a possibilidade entramos em contacto e fazemos a visita”, explica Joana Branco.

“Temos que fazer um estudo daquilo que as pessoas precisam porque agimos sempre de acordo com aquilo que as pessoas pedem e temos que arranjar um assistente pessoal que se coadune com o perfil do beneficiário. Há sempre um casamento, por assim dizer, de feitios e personalidades para que as coisas corram bem e depois temos que ver se tem possibilidade de horário e ver onde ambos moram porque nós abrangemos a zona norte toda”. Joana Branco

O CAVI da Póvoa de Lanhoso dá resposta a pessoas do Porto, Cabeceiras de Basto, Braga, Guimarães, Amares, Vieira do Minho e os quatro elementos da equipa estão responsáveis por gerir e mapear as necessidades dos beneficiários e a disponibilidade de assistentes pessoais.

Com o aumento da divulgação da filosofia de vida independente também aumentou o conhecimento em relação às funções dos assistentes pessoais e já é mais fácil o recrutamento de interessados em exercer esta atividade.

“Neste momento já começa a haver um bocadinho mais de divulgação do trabalho do assistente pessoal”, considera Joana Branco. A diretora técnica diz que quando as pessoas começam a perceber “a importância do projeto na autodeterminação” das pessoas com deficiência e o quanto as ajuda a começar “uma nova vida” permitindo-lhes “fazer aquilo que querem, quando querem, da forma que querem”, já começa a haver muita gente interessada.

O projeto é extremamente positivo em todos os sentidos, temos feito avaliações e visitas domiciliárias para avaliar a assistência e o feedback tem sido mesmo muito positivo”, avalia Joana Branco.

Neste momento, segundo dados divulgados pela secretária de Estado para a Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, desde o início dos projetos piloto, em março de 2019, foram prestadas um total de 909 743 horas de assistência pessoal.

A importância do MAVI na vida das pessoas com deficiência reflete-se também nas 879 pessoas apoiadas pelos 35 projetos piloto em funcionamento. “Perante o sucesso dos projetos-piloto está previsto o alargamento quer do número das pessoas apoiadas quer do período de duração dos projetos”, garantiu Ana Sofia Antunes na página oficial do Facebook.

Segundo uma notícia avançada pela agência Lusa, Ana Sofia Antunes, no âmbito da discussão na especialidade do Orçamento do Estado para 2021, esta terça-feira, revelou que o MAVI terá uma majoração de 25% em candidaturas já aprovadas aos centros de apoio. Este alargamento do financiamento aos projetos piloto de assistência pessoal, implica a revisão da atual portaria, e abrange despesas conexas, como as de formação dos assistentes pessoais e matérias relativas ao funcionamento dos centros de apoio.

“Encontram-se neste momento reunidas as condições […] para podermos proceder a um alargamento do financiamento disponibilizado aos centros de apoio à vida independente.[…] Aquilo que conseguiremos fazer nesta fase que é ainda de projeto-piloto — os quais se vão estender por um período de três anos e que poderão passar a três anos e meio — é permitir que estes centros e o montante global em que se candidataram no início, possa ser majorado em mais 25% do valor total da sua candidatura”, disse a secretária de Estado para a Inclusão das Pessoas com Deficiência.

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