Dançando com a Diferença dentro de portas vimaranenses

PorFórum

Dançando com a Diferença dentro de portas vimaranenses

O +Inclusão / Fora de Portas, um projeto da companhia de dança Dançando com a Diferença, esteve em Guimarães para, durante uma semana, formar professores, monitores e pessoas que trabalhem com alunos com necessidades específicas ou deficiência. Regressa em fevereiro para continuar a preparar a peça Endless com a comunidade vimaranense e começar os ensaios deste espetáculo previsto estrear a 29 de abril, no Dia Mundial da Dança.

Em parceria com A Oficina, o “Dançando com a Diferença” avança, em Guimarães, com um projeto que nasceu na Madeira mas que agora, “fora de portas”, pretende multiplicar por Portugal fora aquilo que é o conhecimento acumulado em 20 anos de atividade desta companhia de dança.

“Tem muito a ver com isso, estamos presentes em dois lugares, daí o fora de portas, mostrando a nossa forma de trabalhar, a nossa metodologia, formando as pessoas para, de alguma forma, poderem levar a nossa experiência para os seus locais de trabalho”, contextualiza o fundador e diretor artístico desta companhia de dança, Henrique Amoedo.

Os participantes na semana de formação, que decorreu de 27 de setembro a 01 de outubro, serão os responsáveis pela identificação dos intervenientes na peça e pela aproximação deste projeto às escolas e às diferentes instituições de apoio às pessoas com deficiência do município.

O mote da “inclusão através das artes” vai guiar o grupo que se criou, enaltecendo as respetivas diferenças e potencialidades, num “caminho para o reconhecimento do outro”, que promete transformar todos os participantes nesta iniciativa. “Este projeto tem que deixar alguma coisa em quem participou nele”, considera o diretor artístico do Dançando com a Diferença.

A proposta parece simples, mas pressupõe a desconstrução de preconceitos e a apresentação de intervenções diversificadas e pensadas para cada realidade. “É um projeto que eu gosto muito de fazer porque é o trabalho de base. É começar no zero”, contextualiza Henrique Amoedo.

“Esta semana foi um máximo. Temos um grupo de professores, técnicos, pessoas que trabalham na área da deficiência em diferentes expressões ou pessoas que estão nas escolas mas que de alguma forma têm ligação com a área da deficiência e inclusão. É dura esta fase, porque o Dançando com a Diferença tem uma maneira de ver a deficiência muito controversa para alguns”, analisa a propósito da formação em Guimarães.

Esta primeira etapa do projeto, além da abordagem teórica sobre a temática da deficiência, inclui a apresentação da peça Endless e a melhor maneira de trazer toda a reflexão proporcionada na formação para dentro de cena. “O espetáculo muda e adapta-se à realidade local embora o tema central, o esqueleto do espetáculo, seja sempre o mesmo. Mas depois vai-se adaptando segundo o contexto local, as pessoas que estão ali e vai sofrendo uma adaptação no tempo sobre diferentes questões”, explica Henrique Amoedo.

Endless é a peça de que se fala e que aborda o tema do Holocausto. Esta peça é o resultado de um projeto europeu que unia a Alemanha, Lituânia, Estónia, Polónia e Portugal. Endless é um espetáculo feito com as gentes locais, com pessoas com e sem deficiência, num contexto em que “há uma valorização da capacidade de cada um”, em que todos vão dar “o melhor que podem dentro do espetáculo”.

Este tema e a abordagem artística do mesmo criam a controvérsia “ideal” de debate e funcionam como ponto de partida para as muitas questões levantadas na formação: “Porque é que é importante falar sobre o tema do Holocausto? Como se trata um tema tão sensível como este com uma população tão sensível como esta? Qual é a importância das pessoas com deficiência poderem estar em cena também com um posicionamento político? O que é que pessoas com deficiência intelectual vão entender do espetáculo (se sabem o que estão a fazer ou não)? Se não sabem o que estão a fazer quais são os ganhos que podem ter por participar? Como se avaliam os ganhos físicos e psicológicos de participar mesmo sem entender aquela história? Como se percebe isso? Qual é a relação disso com a família? A família concorda?”, enumera.

As discussões nesta semana de formação em Guimarães andaram à volta deste “puzzle enorme” para se conseguir “começar do zero”: “Há questões que são duras e eu entendo que muitas vezes são questões que não chegam às instituições nem às escolas mas que eu acho que se têm que trabalhar”, defende Henrique Amoedo.

O regresso está previsto para fevereiro e nessa altura o +Inclusão / Fora de Portas vai começar o trabalho no terreno com as pessoas que fizeram esta formação. “Vamos às escolas e às instituições onde trabalham começar a trabalhar a coreografia. Vamos acompanhando para, em abril, juntarmos todos e fazermos o espetáculo”, explica. O sonho de Henrique Amoedo é ter cem pessoas em palco, sem máscaras e a poderem-se tocar como antigamente.

Foi em 2016 que o projeto +Inclusão começou a aplicar respostas do “Dançando com a Diferença” a diferentes contextos e desde essa altura o trabalho anda sempre ou quase sempre de mãos dadas com a realidade temporal em que se desenvolve.

Em Endeless a envolvência criada com a temática da peça está patente nas visitas de parte do elenco do espetáculo ao Memorial do Holocausto (em Berlim), à Colina das Cruzes (na Lituânia) e aos campos de concentração de Auschwitz-Birkenau (na Polónia). Mas no fundo o Holocausto aqui é só usado para falar de dignidade humana: “É uma metáfora para a dignidade ou a falta dela”, resume Henrique Amoedo. Estas visitas são a prova de que este “é um espetáculo pesado, que faz pensar”. E Henrique Amoedo não trabalha para menos.

“Além da sensação de se estar lá, pudemos conversar, entender e sentir o que era aquilo – mesmo tendo deficiência intelectual, eram pessoas com trissomia 21 – e é daqui que nasce a peça”. E toda a história que existe à volta da peça é passada aos futuros participantes para que eles percebem todo o contexto desta produção. “Essa peça é ensinada às pessoas com todo este background, com as fotos e os vídeos que temos do processo e com filmes que possam falar do Holocausto. Mas o espetáculo vai-se adaptando segundo a realidade e estas questões que se vão discutindo em cada lugar”, explica o diretor artístico.

Há uma cena de fuzilamento em que a última pessoa a ser fuzilada, na Madeira, é uma criança que, na altura dos ensaios, disse à avó que queria fazer aquela cena. A segunda vez que o espetáculo é apresentado, coincide com o aparecimento do corpo de Aylan Kuri numa praia na Turquia e então a criança que participa na peça entra com as mesmas roupas deste menino sírio que morreu afogado. “E não o tiro de cena deixo-o sempre com um foco de luz até ao final do espetáculo”. No Brasil a pessoa que interpretou esta personagem é um rapaz que tinha uma personagem de drag queen e que coloca a questão: Sabe quantas pessoas LGBT são mortas por dia no Brasil?”, lembra.

Em Guimarães quem será? “Eu não sei ainda, vou ter que descobrir”, admite Henrique Amoedo.

E se também quiser descobrir pode assistir à apresentação do espetáculo cuja estreia está marcada para 29 de abril, o dia mundial da dança.

Henrique Amoedo: “As pessoas reconhecem o Dançando pela Diferença hoje pela qualidade artística do trabalho que faz”.

 

 

Fórum Municipal (FM) – São 20 anos do “Dançando com a Diferença” e 20 anos de Henrique Amoedo em à frente desta organização e da respetiva atividade artística: Nada arrependido de estar em Portugal à frente deste projeto?

Henrique Amoedo (HA) – Não. Há 20 anos atrás eu nunca imaginaria que o projeto fosse o que é hoje, com a relevância que tem artística e a relevância que tem dentro da educação especial das pessoas com deficiência e, cada vez mais, em outras áreas. Essa coisa da ‘deficiência’ no decorrer destes 20 anos está no ADN do grupo, é impossível negar mas é quase como se fosse sendo esbatida, outras diferenças, outros corpos não normativos começaram a fazer parte disto. Não estou arrependido e faria tudo de novo.

FM – Ou seja, foi-se descobrindo o conceito de inclusão na prática?

HA – Exato. Porque você abre o seu olhar, a forma de perceber a sociedade. No fundo acho que é isso: perceber a sociedade de outra forma e perceber que posso ter uma intervenção e as pessoas procuram muito o Dançando hoje.

FM – Nestes 20 anos sentem que o “Dançando com a Diferença” acompanhou a evolução positiva na maneira como as pessoas olham para estas questões das diferenças ou de alguma forma andou à frente desta mudança de mentalidade?

HA – Eu acho que são as duas coisas: não posso dizer que só o Dançando fez o trabalho, porque existem trabalhos excelentes que foram surgindo e que acompanham essa mudança mas acho que esteve à frente em muitos sentidos.

FM – A começar pelo impacto que tiveram na ilha da Madeira ou começou cedo a internacionalização?

HA – Primeiro foi conquistar diferentes públicos da ilha, chegar ao público da ilha e depois veio esse processo de internacionalização, não só de mostrar as coisas internacionalmente mas dentro de Portugal continental. Foi um processo pensado, calculado com projetos específicos até se conseguir. Na ilha foi muito mais fácil e rápido, quer seja pela proximidade das pessoas, quer seja pelo facto de sermos companhia residente no MUDAS.Museu de Arte Contemporânea. Ou seja, os nossos espetáculos, no princípio, eram todos lá e o Dançando conseguia, de alguma forma, receber o público que ia assistir e perceber que esse público vai aumentando, vai mudando mas que depois vira um público que segue sempre o Dançando com a Diferença. As redes sociais ajudaram muita a perceber isso nesses anos: quem comenta, quem interage.

FM – Quem é o público do Dançando com a Diferença?

HA – No princípio são os familiares dos artistas mas à medida que foi crescendo o trabalho, hoje posso dizer com certeza que não são os familiares e os amigos. Acho que é um público muito amplo. Se olharmos para a Estatística percebe-se que o público é, maioritariamente, feminino, acima dos 25 aos 45 anos. Mas isso é o normal na área da cultura, o Dançando com a Diferença reflete o público da cultura de uma forma geral.

FM – O público é, no fundo, aquele que está atento à cultura?

HA – Sim. Cada vez mais. Mesmo na minha forma de trabalhar. Não é negar a “coisa”, mas cada vez eu olho menos para as questões da deficiência porque o olhar está mesmo na arte e na cultura, ou seja, qual o coreógrafo que fez isso, o que esse teatro programou e dentro disso também se olha se esse teatro oferece condições de acessibilidade ou não, como tratar essas questões, acaba-se ligando tudo.

FM – Passa a ser indispensável ter a inclusão dentro e fora do palco, não é?

HA – E também o que muda neste processo de 20 anos é o circuito de circulação. Numa primeira fase fazíamos muitos eventos segmentados ou seja os eventos ligados às questões da deficiência ou em risco de vulnerabilidade. Depois o Dançando começa a fazer as temporadas regulares dos teatros e depois começa a fazer alguns festivais e, à medida que o tempo passa, a importância desses teatros ou desses festivais também vai aumentando. Então é conquistar outros espaços.

FM – E essa conquista demora mais por ser uma companhia de dança inclusiva?

HA – A minha resposta talvez vá ao contrário daquilo que se ouve: Eu não sinto que seja mais difícil. Numa primeira fase é mais difícil porque as pessoas não conhecem o trabalho mas com o tempo é quase como se tivesse a qualidade do trabalho reconhecida. As pessoas reconhecem o Dançando pela Diferença hoje pela qualidade artística do trabalho que faz.

FM – Acha que há projetos com qualidade que ficam “perdidos” pela dificuldade de saírem das instituições?

HA – Eu acho que muitos projetos podem fazer esse caminho, mas não acho que isso seja importante para todos os projetos. Os projetos mais de âmbito educativo, de apoio terapêutico eles têm a sua importância e são primordiais. Nem todo o mundo precisa ser bailarina profissional por mais que você goste de dançar, pode dançar noutros contextos.

FM – Podia haver olheiros para captar talentos para estes projetos…

HA – Eu sou muito olheiro, por acaso. A Mariana Temba, que eu conheci numa digressão nossa na Suíça, – eu vi-a a dançar, a Mariana é biamputada, e convidei-a e ela está no Dançando com a Diferença, foi para a Madeira, mora lá e faz agora uma peça com a Marlene Monteiro Freitas, uma coreógrafa portuguesa super importante – elas estão a dançar no Tivoli hoje, por exemplo. Ou seja, a Mariana tem viajado o mundo inteiro com a Marlene dançando esta peça. E a questão da Marlene não tem nada a ver com a questão da deficiência é uma questão artística: é um grupo de dança que tem uma pessoa com deficiência no meio daquela peça. Por isso quando se consegue começar a dar estes saltos é quase como se a dança inclusiva, que eu falava em 2002, fosse dispensável. Em Portugal há projetos muito bons que têm vindo a crescer: o Terra Amarela é um exemplo, o trabalho da Diana Niepce é outro exemplo. Tem um trabalho em Ponte de Lima da Conceição Cunha, na APPACDM que tem uma qualidade enorme, é o exemplo de um trabalho que não pretende ser uma companhia de dança profissional. Existem trabalhos assim e eles têm que acontecer e percebo que cada vez surgem mais projetos e mais pessoas.

A peça “Vaamo share oque shop é Beiro Pateiro.workshop” da Vera Mantero foi uma co-produção com A Oficina e estreou em Guimarães a 01 de maio deste ano, dentro do Quadrilátero, e por isso também em Barcelos, Braga e Famalicão.

FM – Em termos de estrutura o “Dançando com a Diferença” é uma organização que já mexe com muita gente?

HA – É uma estrutura muito grande e que, de alguma forma, me afasta dos bailarinos, do trabalho do terreno. Trato muito mais da estrutura hoje do que estou na sala a dar aula de dança. Temos o Núcleo de Dançando com a Diferença em Viseu…

FM – Pois, como surgiu esta ligação?

HA – Naturalmente mas é um projeto de continuidade. A nossa primeira relação com o Teatro Viriato acontece em 2011:eu fui dar um workshop e depois o Paulo Ribeiro e a Leonor Keil coreografam para o Dançando com a Diferença e criam Desafinado. Depois eu volto para um workshop e vamos tendo vários momentos de encontro ali no Teatro Viriato e, de alguma forma, foi alertando as pessoas com deficiência para estarem no teatro a fazer aulas de dança através desse workshop. Depois a direção do teatro convida para fazer um projeto maior e com maior duração: visitamos as instituições todas que trabalham para pessoas com deficiência em Viseu e foram convidadas a participarem num projeto que durou três meses com aulas regulares. O objetivo era fazer uma mostra final do resultado e o passo seguinte foi manter um núcleo regular de trabalho no Teatro Viriato e nas instituições. Então hoje é uma estrutura grande que atende em Viseu mais de 200 pessoas. Depois na Madeira também é uma estrutura grande com a companhia e os grupos de base. Com a pandemia tudo parou e devemos retomar em janeiro, mas a companhia parou pouquíssimo porque é como se fosse uma bolha.

FM – E a paragem foi útil? 

O contexto da pandemia não permitiu que o Dançando com a Diferença prosseguisse com a criação de uma peça com André Teodósio, fundador do Teatro Praga. O convite ao realizador Jorge Jácome resultou em “SuperNatural”, um filme performativo que foi apresentado work in progress  a 09 de maio em Guimarães, seguido de uma conversa presencial em torno do mesmo que juntou Henrique Amoedo, André Teodósio, José Maria Vieira Mendes e Jorge Jácome. A próxima paragem é a 27 de outubro em Viseu em outubro e o desejo principal é que circule pelas salas de cinema do país.

HA – Foi. Foi ótima. Fez com que tivéssemos tempo para pensar algumas coisas e reorganizar algumas coisas, mesmo na estrutura. A estrutura hoje no total emprega 13 pessoas, fora os bailarinos da companhia. É uma estrutura enorme para o que faz mas que gere emprego e mexe na cultura e nas artes na Madeira. A pandemia deu para parar, para pensar quais são os objetivos para os próximos 10 anos para Viseu, para a companhia…

HA – Além de Viseu o “Dançando com a Diferença” imagina-se a criar outros núcleos?

HA – Temos muitos convites para fazer outros núcleos mas eu resisto muito porque temos que nos consolidar. Eu não queria que o Dançando com a Diferença virasse o Macdonalds e que tivesse um franchising. Não é que não possamos fazer outro núcleo a determinado momento, mas temos que ter as coisas consolidadas primeiro e Viseu está a caminho da consolidação e já consegue fazer o trabalho de uma forma muito efetiva. E se eu não consigo estar lá, não é que eu seja a peça principal mas gosto de ver e não adianta porque eu não consigo estar em todos os lados. Acho que não é essa a ideia e a solução encontrada para isso é o projeto “+Inclusão fora de portas”. Tem muito a ver com isso, estamos presentes em dois lugares, daí o fora de portas, mostrando a nossa forma de trabalhar, a nossa metodologia, formando as pessoas para, de alguma forma, poderem levar a nossa experiência para os seus locais de trabalho.

 

Fotografias: @Julio Silva Castro

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