A história de Bernardino Machado é a de um pai que dedicou grande parte da sua vida ao cuidado do filho Diogo, portador de uma doença neuromuscular rara, enfrentando falhas do sistema de saúde, burocracias e uma rotina exigente de cuidados.
Nascido numa família numerosa, Bernardino descreve a infância como um quotidiano de ocupações, responsabilidades e independência precoce. Cresceu numa casa onde todos trabalhavam e contribuíam para o sustento familiar, marcada pela ausência do pai, que morreu quando ele tinha quatro anos. As memórias desse período são moldadas sobretudo pela figura da mãe, viúva e pilar emocional. “Ela era o meu apoio”, recorda. Quando a perdeu, aos 23 anos, sentiu o impacto de forma profunda. “Foi muito doloroso, numa fase delicada da minha vida”, assume o cuidador informal.
A influência materna permaneceu como guia. O mote “olha sempre para o lado bom das coisas” acompanha-o diariamente. A mãe, que nunca soube ler ou escrever, transmitiu-lhe valores de ponderação, resiliência e fé. Bernardino lembra-a como uma mulher “extremamente sensata”, incapaz de reclamar da vida mesmo perante dificuldades severas. Essa visão do mundo moldou a forma como viria a encarar a parentalidade.
Quis ser pai cedo. Aos 23 anos casou e junto da esposa recorreu a uma fertilização in vitro que resultou no nascimento do primeiro filho. Diogo nasceu com uma miopatia, uma doença neuromuscular rara que enfraquece os músculos voluntários, comprometendo movimentos, força e autonomia. Bernardino nunca projetou nos filhos expectativas de sucesso nem comparações com outras crianças, desejava apenas que fossem felizes. Diogo nasceu com problemas de saúde que exigiram terapias constantes, mas nunca encaradas como um obstáculo. “O meu filho era assim, e a única coisa que sempre quis foi a felicidade dele”, sublinha Bernardino Machado.
O menino cresceu doce, alegre e determinado, apesar da fragilidade física. Era excelente aluno, motivado sobretudo pela relação com os professores. “Não era a disciplina que o movia, era o professor”, explica. A vontade de aprender contrastava com a falta de força muscular, que se agravava com o crescimento e culminou na necessidade de uma cadeira de rodas elétrica aos 10 anos. A mudança trouxe autonomia, mas também consequências inesperadas — por falta de informação adequada sobre postura e apoio, acabou por desenvolver uma escoliose que exigiu cirurgia.
A operação, prevista como rotina, resultou num revés: após sete horas no bloco e dois dias de sedação, Diogo sofreu uma paragem cardiorrespiratória. Ficou com lesões neurológicas severas, perdeu a audição, a capacidade de reação e a autonomia básica. Seguiram-se dois meses no hospital, um nos cuidados intensivos, outro na pediatria, durante os quais Bernardino, depois do choque, enfrentou a incerteza e episódios que abalaram a confiança na equipa médica. Uma enfermeira chegou a sugerir-lhe que “deixasse o filho ir”, algo que o pai denunciou e que o marcou profundamente.
Determinou então que levaria o Diogo para casa. “Nunca me passou pela cabeça deixá-lo num lar”, relembra o ex-cuidador. Mas o processo foi burocraticamente difícil e exigiu autorização de várias especialidades. Quando enfrentou resistência, manteve-se firme: “se não chamarem a ambulância, chamo eu”. Depois de instalado o material necessário e concluído o longo circuito administrativo, regressaram finalmente a casa e a evolução do filho surpreendeu os médicos. Ganhou novamente expressão facial e recuperou parte da tonicidade muscular. Começou a reagir: chorava, mas os sorrisos voltaram a aparecer também.
Bernardino reorganizou a sua vida para ser cuidador a tempo inteiro. Antes da doença do filho já ajustara horários e empregos para o acompanhar, mas a partir daí a dedicação tornou-se exclusiva. Pediu o Estatuto de Cuidador Informal, processo que decorreu sem entraves online, embora demorasse meses a refletir-se nos pagamentos da Segurança Social. Considera que a falta de informação é um dos maiores entraves para famílias em situações semelhantes. “Para cobrar, o Estado sabe sempre onde estamos. Para ajudar, já não”, lamenta.
O pai recusou sempre isolar o filho. Levava-o à praia, a passear, mantinha rotinas, falava com ele “como se conversassem os dois”. Sabe que quem passava por eles podia achar estranho, mas nunca se importou. “No meu mundo, estávamos só eu e o meu filho”, recorda.
Hoje, quando revisita o percurso, resume-o em duas palavras: amor e dedicação. Rejeita classificações de “super pai” e insiste que fez apenas o que qualquer pai deveria fazer. “Tudo o que fiz foi com o melhor que sabia e sempre com amor”, afirma.
O Diogo veio a falecer este ano. Quanto à imagem que deseja que o mundo retenha do Diogo, não hesita: “o sorriso”. Aquele sorriso persistente que descreve como força, ternura e vitória silenciosa sobre as limitações impostas pela vida. É essa memória que guarda, e é essa que quer que perdure.
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