Ler, conduzir e ver futebol são as três coisas de que João Artur Fernandes, um vimaranense que aos 50 anos ficou cego devido a uma retinite pigmentosa, mais sente falta. A perda de visão progressiva que esta doença degenerativa provoca não amenizou o choque que sentiu ao ficar completamente cego. Já lá vão mais de 10 anos, altura em que descobriu na poesia e na música refúgios para conseguir libertar-se da mágoa que sentia e que ainda sente. Mas esta é sobretudo uma história de amor, de um amor à vida e a uma vida inteira partilhada a dois.
Dizem que por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher e o Fórum Municipal das Pessoas com Deficiência de Guimarães esteve à conversa com um casal que é exemplo disso. João Artur Fernandes tem, não por trás, mas ao lado Fernanda Lima. Quem os conhece habituou-se a vê-los sempre juntos, uma cumplicidade que quatro anos de namoro e 41 de casados têm vindo a alimentar. É uma vida inteira partilhada de quem vai buscar aos votos de casamento as forças que precisa para juntos, sempre juntos, ultrapassarem as dificuldades do dia-a-dia.
A 11 de janeiro de 2020 João Artur Fernandes e Fernanda Lima fizeram um rewind, que é como quem diz, andaram para trás, e contaram desde o início esta história de amor.
Fernanda Lima é natural de Atães e João Artur Fernandes de São Torcato e conheceram-se há 45 anos. “Eu conheci esta peça importante numa vindima do primo que morava ao lado da casa onde ela morava. E ela ia para lá carregar cestos de uvas à cabeça e foi aí que eu a conheci”, começa por contar João Artur Fernandes que diz ter sido amor à primeira vista. “A partir daí nunca mais desgrudámos”, atira.
Conheceram-se, curiosamente, quando o jovem se esforçava por não fazer fraca figura junto dos primos que tinham “uma rotina de vida que lhes dava uma certa energia, eram mais musculados” e, por isso, “pegavam nos cestos e punham na cabeça”, sem grandes dificuldades. “Eu era franzino, apesar de medir 1,74 só pesava 55 quilos e armei-me em gringo para fazer igual a eles. Mas também reguila, não deixei encher bem o cesto que era para poder com ele e para fazer-me forte. Umas artimanhas que se usa às vezes”, lembra João Artur Fernandes.
Tinha, na altura, 18 anos e a jovem Fernanda 15 quando se conheceram. Depois de um namoro de quatro anos casaram e viveram 17 anos em Aldão. “Mas eu tive sempre a ideia e o desejo de voltar para a minha terra”, admite João Artur Fernandes.
O problema de visão sempre existiu, mas nunca imaginou que estivesse em causa a perda completa da visão. “Segundo a teoria dos oftalmologistas é um problema hereditário, só que é progressivo. Já vinha com a doença e aos poucos fui perdendo a visão”, sintetiza. Foi a muitos médicos à procura de um sopro de esperança mas a resposta era sempre a mesma: mais cedo ou mais tarde ia ficar cego. “Como é que vivia com isto? Nunca me adaptei muito bem. Eu procurei oftalmologista atrás de oftalmologista e não me importava de gastar dinheiro, mas a resposta era sempre a mesma. De cada consulta eu saía com a sensação de estrangulamento. Mas nunca me conformei com isto. Procuro viver, mas a mágoa está cá dentro”, admite João Artur Fernandes.
No papel de esposa Fernanda Lima vivenciava a angústia de assistir impotente ao desgosto que o marido sentia e partilhava o sofrimento que isso representava na vida de ambos. “Não é muito fácil. Tive que me adaptar à situação e tentar dar-lhe o máximo de apoio. Pensava muitas vezes: ‘se fosse eu gostava que me ajudasse’. Então tentei fazer tudo para ele se sentir bem”, refere. “Resumindo e concluindo, esteve sempre do meu lado sem condições. De certeza que não foi fácil para ela e para mim muito menos”, garante João Artur Fernandes.
“Conduzir, ler e ver, principalmente, futebol na televisão”, são as três coisas de que sente mais falta. Fernanda era telefonista numa empresa de plásticos e João Artur trabalhou a vida toda na empresa têxtil Herculano & Pimenta. “Por volta dos 40 anos reformei-me mas não deixei de trabalhar. Enquanto a visão deu, até à última, eu trabalhei”. Gostava do que fazia e, em casa, continuou a cortar calças. “Se precisava de moldes era eu que os fazia, alagava umas calças, descosia-as todas e fazia os moldes. E tenho saudades disso”, confessa. “Até cortar um dedo”, revela a esposa. “E aí decidi parar”, acrescenta o marido.
A última consulta da especialidade a que João Artur Fernandes foi deixou-o “de rastos”. “Saímos de lá os dois a chorar”, confirma a esposa. “Podia amenizar a coisa, mas foi radical, frio, disse ‘esqueça’ e além disso levou-me o dinheiro que me fazia falta”, lamenta. “Dez minutos”, diz Fernanda. “100 euros”, completa João Artur.
Não quis frequentar aulas de orientação e mobilidade, nem aprender como utilizar uma bengala ou fazer-se acompanhar de um cão-guia. “Na rua ando sempre acompanhado seja pela esposa, um familiar ou um amigo. Em casa ando sozinho”, descreve. “Ele é muito despachadinho, mas de vez em quando ainda dá umas cabeçaditas”, comenta a esposa. “Mas isso é quando facilito, às vezes encontro uma barreira”, desculpa-se o marido.
A única coisa que aceita, neste processo de adaptação, é o acompanhamento psicológico. Conseguir partilhar o que sente é muito importante, mesmo o contacto com pessoas que passaram pelo mesmo tem muito impacto, mas, mesmo a psicóloga o assume, a escrita teve um efeito catártico na vida de João Artur Fernandes. “Eu quis libertar o que ia dentro de mim e ajudou-me a acalmar porque eu fui obrigado a reaprender a viver. Se eu tivesse nascido cego só conhecia aquele mundo, mas depois de ver tudo a revolta ainda é maior”, declara. Passar para o papel tudo o que sente foi melhor do que “ficar fechado em casa a chorar pelos cantos”, admite.
A veia de escritor descobriu-a por acaso para participar numa noite de poesia organizada pela Associação para o Desenvolvimento das Comunidades Locais (ADCL). “Fiquei a matutar naquilo, fui para a cama e por causa de uma a insónia de manhã tinha um poema feito na cabeça. “Espetáculo”, adjetiva a esposa entusiasmada. “Na noite do evento até a minha cara aqueceu porque fui para o palco e comecei a desenrolar, cheguei ao fim e quando ouvi os aplausos e as pessoas a dizerem ‘bravo, bravo’. Eu pensei: ‘Isto é para mim?’. E afinal era. Eu senti-me pequenino. A partir daí comecei a ganhar gosto”, explica.
João Artur Fernandes memoriza o poema, quadra a quadra, vai falando para o gravador digital e ouve. “Mudo uma frase, mudo uma palavra e o que não me agrada volto a gravar”. É assim que se desenvolve o processo criativo deste poeta vimaranense. Porque embora não tenha perdido a capacidade de escrever não se consegue orientar numa folha de papel e o Braille não lhe faz sentido aprender.
A Cristina [da ADCL] foi passando ao computador, um, dois, três, quatro… Quando dei por mim já lá tinha 109 poemas”, contou. Foi assim que nasceu o primeiro livro “Lágrimas, Revolta, Amor e Fantasia”, lançado em março de 2017. “Decidi fazer 300 exemplares e num mês e meio fiquei sem livros”, lembra. “Também tinha uma boa vendedora ao lado dele”, brinca Fernanda Lima. “O livro tem esse título ‘Lágrimas’ porque eu chorei muito, ‘Revolta’ por ter que ficar de braços cruzados à espera que as coisas aconteçam sem poder fazer nada. Depois o ‘Amor’ que eu senti por parte da minha esposa que estava ali para tudo. E a ‘Fantasia’ de poemas que surgiram como a outra pessoa qualquer”, explica.
O ano passado lançou o segundo livro intitulado “Avanços e Recuos e…”. “Continuo a fazer poemas quando a mente funciona, mas a coisa tem andado fraquita. Ainda me vejo muito a explorar a revolta, mas eu não queria ser repetitivo. Estou a tentar chegar ao terceiro”, revela.
Outro dos dotes de João Artur Fernandes é tocar viola. “Só depois de já não ver é que fui aprender, o básico, não tenho aquele arcaboiço de um músico”. Mas isso não o impede de compor algumas canções. Sempre teve o “bichinho” de um dia aprender a tocar algum instrumento musical. “Eu gostava de tocar piano, mas não deu”.
“Ele está inserido no projeto ‘Então vamos’ e também faz umas músicas para ele”, revela a esposa. Refere-se a um projeto desenvolvido pela ADCL que nasceu no âmbito do Orçamento Participativo da Câmara Municipal de Guimarães “há cinco ou seis anos” para ajudar a “amenizar a solidão das pessoas com mais de 65 anos que vivem sós” e as que querem participar ou assistir ao espetáculo que resulta dos encontros mensais realizados. “É teatro, às vezes mete uma canção ou outra e eu componho a melodia ou utilizo as músicas existentes para encaixar a letra”, explica João Artur Fernandes.
Diz que a camaradagem no âmbito deste projeto é muito boa. “Eu não tenho razão de queixa, estão todos atentos a ver se eu dou um passo em falso e preocupados para eu não cair”, exemplifica. Os elogios à memória são constantes, mas a verdade é que por trás da capacidade de memorização está “muito trabalho de casa”. Em casa ela [Fernanda Fernandes] diz-me o que está no papel e eu gravo com a minha voz e ao fazê-lo já estou a memorizar e depois oiço aquilo vezes sem conta. É treino, não é só memória”, explica. “E o papel dele é sempre muito grande. Às vezes fico uma tarde de domingo a ler-lhe aquilo tudo para ele meter no gravador”, comenta a esposa.
No dia-a-dia divide o tempo dedicado à escrita, à viola ou ao teclado e ao projeto da ADCL com os passeios que faz juntamente com a esposa. “Encontramos sempre amigos, duas de treta e o tempo vai-se passando”, acrescenta Fernanda Lima que diz dedicar o restante tempo livre “à lida da casa”. “Gosto de ter as coisas direitinhas e se saio sei que elas não estão direitas. Como ele também me ocupa tempo quando tenho que sair com ele, tenho que ter tudo sempre em ordem”, revela.
O escritor torcatense faz parte de um grupo chamado “Poetas de Selho”, que reúne, uma vez por mês, cerca de 14 pessoas para declamar poesia, às vezes originais, outras vezes de outros autores. “Faço uma vida que, de certa forma, me ajuda a relaxar um bocadinho, embora nos momentos mais solitários vem…”, hesita. “Vem a revolta”, completa a esposa. “Passar de um mundo para o outro é difícil”, remata João Artur Fernandes. “Não poder fazer nada, isso custou”, confessa. A esperança de encontrar uma inovação na medicina que o consiga ajudar está adormecida, mas não morreu: “Eu gostava que surgisse alguma coisa que desse pelo menos para poder caminhar e andar sozinho”, termina.
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